domingo, 13 de maio de 2007

Um homem, uma referência, um pai...

Hoje, sem motivo especial, dei por mim a pensar no meu pai. É curioso como apesar de terem passado 11 anos sobre a data da sua morte, a sua presença e influência ainda estão bem vivas em mim. O meu pai foi um grande homem em todos os sentidos e acho que lhe devo uma homenagem pois para além de meu pai ele foi um fantástico ser humano. Mas a história começa muito mais atrás…
O meu pai biológico abandonou a minha mãe ainda antes de eu nascer, ela tinha 19 anos quando eu nasci e foi recolhida por uma casal a quem eu viria a chamar tia e avô respectivamente. O meu pai (adoptivo) só surgiu na vida da minha mãe quando eu já tinha 3 anos de idade. Ele era fadista nas horas vagas e enfermeiro da Cruz Vermelha onde chegou a instrutor. Era aquilo que muitas mulheres consideravam um borracho, bonito, tipo atlético e sempre bem vestido. Ainda me lembro de ele se encontrar com a minha mãe no jardim em frente dos Jerónimos, trazia-me sempre um pacote de bolachas de baunilha, ainda hoje gosto delas. A verdade é que ele me perfilhou e desde então sempre me tratou como filho. Recordações? Tenho muitas. Desde ele levar-me com ele para o Bairro Alto aos fados onde ia cantar e quando eu adormeci trouxe-me ao colo até um táxi, na altura era caro. Dentro do táxi acordei “Olha o popó!”, ele já não teve coragem de sair e graças a essa aventura no dia seguinte teve que ir a pé para o emprego pois gastou todo o dinheiro comigo. Esta apenas uma das muitas histórias. Quando teve que me dar a primeira injecção tremia mais ele do que eu. Nunca deixou que nada me faltasse.
O meu pai era um desses homens capazes de fazer qualquer coisa pela família. Era um homem habilidoso e muito trabalhador. Não tardou muitos anos que tivesse uma casa de fados só dele, uma excelente casa para a família, carro e duas empregadas, uma apenas para cuidar de nós, eu e mais dois irmãos. Mas aí tudo mudou, as doenças chegaram e o meu pai para salvar a vida da minha mãe vendeu e empenhou tudo quanto tinha. Cheguei a vê-lo fazer saponárias na banheira para levar roupa lavada para a minha mãe, eu brincava aos barquinhos com os pedaços de sabão sem perceber o que se passava.
O meu pai era alegre, brincalhão e não havia um Carnaval que ele não se mascarasse de “Francesa Bêbada” como ele dizia, um penico atado com uma gravata servia-lhe de mala de mão. Muitas adversidades teve que enfrentar em conjunto com a minha mãe por causa de doenças, isto ao longo de toda a vida.
Viemos morar em Lisboa onde um dia com 32 anos foi internado com uma suposta gripe. Uma injecção estragada atirou-o para uma cadeira de rodas.
Qualquer outro teria desistido, mas ele não. Fez reabilitação em Alcoitão, jogou basket em cadeira de rodas, aprendeu a tricotar camisolas de lã numa máquina, ajudou a fundar um clube de futebol que ainda hoje existe e nunca deixou de acreditar que um dia voltaria a andar, infelizmente nunca o conseguiu. Era uma pessoa autónoma, vestia-se e lavava-se sozinho, ia para Lisboa tratar de assuntos disto e daquilo, e eu lá ia atrás com ele. Mais tarde arranjou um triciclo a motor e nunca mais parou. Lembro-me que ele tinha sempre um sorriso nos lábios, sempre uma piada para contar e era querido por toda a gente. Já mais velho apareceu-nos uma criança abandonada à porta, ele ganhou mais um filho e nós um irmão. Éramos quatro passámos a ser cinco. Ainda hoje somos cinco irmãos de plenos direitos.
O meu pai tinha coisas que eu herdei dele. Uma das suas frases era: “Quem tem deveres não dorme” – eu sou fiel a esse princípio. Nunca faltar ao trabalho numa segunda-feira, dizia ele que esse é o dia em que faltam os preguiçosos que andaram na borga no fim-de-semana. Também herdei dele o sentido da honra, do dever e do respeito para com os outros. Herdei a força face à adversidade e o espírito de nunca me render, este também o devo à minha mãe. O sentido de humor também veio dele. Em suma grande parte daquilo que sou devo-o a ele, graças aos princípios que cedo me incutiu ajudou-me a formar e definir um carácter que se mantém até hoje. Foi um grande homem e um grande pai. É nele que busco referências para educar os meus filhos e se conseguir ser um pouco só como ele foi tenho a certeza que serei um bom pai. Foi com ele que aprendi a nunca bater nos meus filhos ( a minha mãe era mais de bater), o meu pai conversava comigo e depois de me explicar as coisas impunha um castigo que era cumprido.
Os anos passaram e tivemos muitas divergências, ele queria o melhor para mim, eu queria fazer e fiz asneiras. Fui para a música ao contrário do que ele desejava que fizesse que era tirar um curso. Muitos anos mais tarde pediu-me uma cassete das minhas músicas e ouviu aquele rock barulhento de princípio ao fim. No final deu-me os parabéns. Foi o meu disco de platina aquela aprovação. Viu-me na TV, infelizmente nunca me viu tocar ao vivo.
Um dia, contrariamente a tudo o que sempre professara quis casar com a minha mãe pela igreja, viveram juntos 23 anos antes desse evento. Foi muito engraçado os filhos todos na primeira fila a assistir ao casamento dos pais. Momentos inolvidáveis.
Foi-lhe diagnosticado um cancro nos intestinos e gradualmente a doença tomou conta dele. Fez inúmeras intervenções cirúrgicas, a cada uma ele acreditou que ficaria melhor, entrava sorridente para a sala de operações e de lá saía sorridente. Na última operação fui buscá-lo ao Egas Moniz e quando o vi percebi que o fim estava próximo. Aquele homem de porte atlético estava pele e osso, a voz já mal se ouvia, só o sorriso e o brilho dos olhos eram os mesmos. Alguns meses mais tarde deu entrada no Hospital de Cascais e dia sim, dia não a minha mãe avisava-nos para que fossemos lá pois a hora não tardava. Este impasse durou semanas. No dia 12 de Março eu tive que embarcar para Frankfurt ia em trabalho para a feira da música ao serviço de uma empresa. Na véspera fui ao hospital eram cerca de 22h. Aproximei-me da cama, o meu pai já não falava, abriu os olhos e quando me viu sorriu, com dois dedos trémulos segurou o meu dedo, nos seus olhos aquele brilho que eu tanto admirava, a mesma força e aquele sorriso que nunca o abandonou. Não falámos, dissemos tudo com os olhos, ele adormeceu e eu fui embora. Quatro dias depois dia 15 de Março, em Frankfurt, estava na hora do jantar e eu acabara de escolher a comida, meu telemóvel tocou e veio a notícia, acabara de falecer o meu pai com o mesmo sorriso com que vivera. Tentei voltar mas não havia vagas em avião nenhum. O meu filho fizera anos no dia anterior que ironia. Pensei no que o meu pai gostaria que eu fizesse se me estivesse a ver, ele certamente gostaria que eu terminasse o trabalho que viera para fazer, foi o que fiz. Cheguei a Portugal no dia 17 à noite, o meu pai fora a enterrar nessa manhã e eu nem aí estive presente. Encontrei-me com a minha mãe no dia 18, dia dos meus anos, parecia que tudo estava igual e que o meu pai fora apenas dar uma volta. Ainda hoje sinto a sua presença e a sua força, aquele sorriso e o brilho dos seus olhos, as suas palavras, sinto a sua falta para me ouvir e dar conselhos, o quanto gostava de lhe ter dito e não disse. Na verdade hoje eu sei que tive o melhor pai do mundo e vivi com o maior dos homens, o meu pai.

O Cartoon que se segue


26 comentários:

Afgane disse...

Muito obrigado Van Dog do fundo do coração
Abraço

Ana disse...

Quando perdemos aqueles que nos são queridos, ficamos sempre com a sensação de que não dissemos ou fizemos o suficiente.
Com toda a certeza, o teu pai não pensará o mesmo, esteja ele onde estiver.

Bonito texto e grande homem!

(adorei a música!)

Beijinhos

Afgane disse...

Ana,
É bem verdade o que dizes, muitas vezes dou por mim a pensar que lá onde quer que ele esteja ele sabe tudo o que me vai no coração e sentirá tudo o que não lhe disse em vida. Pelo menos saberá que não o esqueço nunca e que sinto muito a falta dele.
Beijinhos

Anónimo disse...

"quando eu morrer,
não quero ficar sózinha.
quero a companhia da música,
para me guiar na travessia."

...

Que bonita homenagem ao teu pai! ele merece continuar vivo na tua memória e no teu coração!

(espero que ele aprecie a música que lhe dedicaste no teu post..)

cartoon: a Marla adorou ;0)

montes de beijos

Afgane disse...

Querida Kuska,
Tu conheceste-o, sabes como ele era e a importância que ele teve para mim e ainda tem. Foste tu quem me deu a notícia por isso partilhaste o momento e representáste-me nas cerimónias, acho que esta é uma homenagem que lhe devia.
Fica tranquila que se fores primeiro eu até toco guitarra para te guiar e os canitos acompanham uivando. Se formos primeiro na hora de partires tocaremos harpa lá de onde estivermos (não sei se têm electricidade) e ficamos à tua espera.
Acho que o meu pai onde quer que esteja gostará da música, melhor só eu fazendo uma, talvez um dia quem sabe.
Ainda bem que a Marla gostou do cartoon
beijinhos

CAP CRÉUS disse...

Só algo do género para me fazer ir às lagrimas.
Passei pelo mesmo vai fazer no dia 10 de Junho 8 anos.
Um dia escrevo sobre o que me vai na alma!
Música muito bem escolhida!
Abraço

Afgane disse...

Cap Créus,
Sinto muito, ambos sabemos o que isso é. Para mim escrever sobre o que me vai na alma é como que libertar o mais profundo de mim e partilhar os meus sentimentos com os outros, pelo menos aqueles que me quiserem receber do mesmo modo que eu os recebo. Escreva quando quiser que certamente eu irei até lá para ler.
Abraço

Anónimo disse...

Muito lindo

Afgane disse...

Rute,
Muito obrigado pelo seu comentário, volte sempre quando o desejar

Carracinha Linda! disse...

Onde quer que o teu pai esteja, ele há-de estar com o mesmo sorriso de sempre. Ler estas palavras vindas de um filho deve encher qualquer pai de orgulho.

Muito bonito mesmo este texto!

Bjs

Afgane disse...

Carracinha,
Muito Obrigado pelas tuas palavras, a homenagem é bem pequena comparada com a grandeza do homem que foi meu pai, quanto ao sorriso dele e aquela força de viver estão para sempre gravados no meu coração.
Beijos

Diabba disse...

Tenho uma história parecida com a tua, tive um pai parecido com o teu, o mesmo brilho, os mesmos olhos de mel, o mesmo amor.
Mas não quero falar nisso, doi.

beijo d'enxofre

Teresa disse...

Eis um texto que eu não posso comentar. Demasiado pessoal.

Um Pai é sempre uma figura marcante. O meu também já morreu. Não gosto de falar disso.

Afgane disse...

Diabba,
Como tiveste um pai parecido com o meu sabes que é alguém que nos marca para a vida inteira. A mim não me dói falar nisso, o que me dói é recordar tantas vezes e tantas coisas sabendo que já não o tenho comigo, só no coração e na memória.
Beijos

Afgane disse...

Querida Teresa,
Compreendo e respeito a sua dor. O meu texto é mais uma homenagem que eu senti necessidade de fazer, é como se falasse comigo mesmo.
Beijos

Carracinha Linda! disse...

Olá Afgane!

Obrigada pelas bonitas palavras que lá deixou.

Dói mas não mata. Grande lema. E verdadeiro também!

Mais uma vez: obrigada!!!!!

Bjs

Sandokan disse...

Não haja dúvida nenhuma que um pai marca sempre uma pessoa. E como gosto tanto do meu pai!!!!
Parabéns pela tua bela narrativa.

Deixo-te este meu poema:

A casa está vazia.
Subo as escadas e tu apareces,
às vezes,
com as cores do Outono.
Vejo um vulto, és tu
que me deixas uma marca
sobre a minha palidez.

Já não queres aprender
com o passado e só preferes
gritar, chegar ao fim da vida
para então descobrir
que não viveste.

Já não falas e não te moves,
e no entanto a minha vida estremece,
assaltada pelos teus gemidos profundos.
O pranto cresce nas ruas da amargura
porque abandonas a terra,
olhando para trás.
Então,
agora vislumbras a beleza
e a alegria que nunca tiveste,
porque os medos em que viveste
te impediram de ser feliz.
Os meus dedos continuam a fechar
os olhos...
dos guerreiros mortos.

Quero agradecer, respeitosa e sinceramente, a todos aqueles que fazem do "nosso"

http://lusoprosecontras.blogspot.com

um ponto de encontro onde a Amizade, a Paz e o Bem nos fazem sentir e viver a vida com mais AMOR.

BEM-HAJAM!


Felicito-te, também, por me presenteares com este teu maravilhoso blogue. Gosto muito de aqui "ancorar".

Afgane disse...

Cara carracinha,
No que eu puder ajudar estou à disposição.
beijos

Afgane disse...

Sandokan,
Obrigado pela visita, pelo comentário e pelo poema, volte sempre.
Abraço

Ana disse...

Voltei para te avisar que foste "apanhado" numa corrente...lá no meu cantinho.

Bjs

Anónimo disse...

Linda homenagem, um homem inspirador.

LurdesMartins disse...

Bonita forma de se falar do Pai!
Confesso que me caíu uma lágrima...

Vim cá por curiosidade e gostei do que li!

Beijinhos

Afgane disse...

Lurdes,
Esta foi a forma que encontrei para homenagear o grande homem que foi meu pai, é o que sinto.
Obrigado pela visita
volte sempre

Anónimo disse...

faltou apenas uma coisa: o voltar a andar...

gostei muito.

Afgane disse...

Caditonuno,
Pois é ele nunca voltou a andar, mas garanto-lhe que em todos os momentos da sua vida nunca deixou de tentar e de acreditar. Na verdade é disso que é feita a vida tentarmos alcançar o sonho e acreditarmos que vamos conseguir. Pelo meio encontraremos muitas coisas mais que por vezes suplantam o próprio sonho.
Abraço

Pedro Arunca disse...

Tocou-me de tal modo que uma lágrima, teimosa, insiste e vence. Até que podia contar, aqui, em poucas linhas (paralelas?) e com algumas frases desfeitas outra história cujos intervenientes bem conheço... ~
Isto de blogar tem muito que se nos diga. Agora, fiquei a pensar no assunto. Lá irei...noutra oportunidade. Cá, voltarei com vontade.