Através de algumas conversas fui-me apercebendo que a maioria das pessoas tem uma noção errada sobre a vida dos músicos. Para muitos a vida de um músico é um mar de divertimento, noitadas, mulheres, álcool e em certos casos drogas. Mas a verdade é que este cenário, pelo menos para a maioria dos músicos não existe. As coisas processam-se de forma diferente e a realidade é muito mais crua do que o simples dourar da pílula. Vejamos a título de exemplo um simples concerto.
Para muitas pessoas um concerto resume-se a 50 ou 60 minutos de música, um palco iluminado e uma banda a tocar. Na verdade para quem foi assistir ao evento esta imagem é real, mas não o é para os músicos nem para todas as pessoas envolvidas na organização do espectáculo. Mas fiquemos só pelos músicos…
Dispensando factores como composição, arranjos e gravação das músicas, vou apenas referir o que acontece no tempo que antecede um espectáculo. Cada músico tem o seu processo, mas existem procedimentos comuns a todas as bandas.
Regra geral uma banda ensaia com regularidade, mas com um concerto marcado tais ensaios intensificam-se. É elaborado um alinhamento (as canções que vão ser tocadas) e por vezes um alternativo caso o público não reaja muito bem ao inicial. Após definir as canções e qual a ordem porque serão apresentadas começam os ensaios seguindo o esquema do alinhamento. Nos muitos grupos em que participei os alinhamentos reflectiam a seguinte ordem: iniciava-se com temas fortes para aquecer o público, seguiam-se alguns temas mais calmos e as baladas e arrancava-se para o expoente máximo que eram os temas mais conhecidos e que punham toda a gente ao rubro. Em suma este é o trabalho de banda durante algumas semanas que antecedem o espectáculo.
O processo que descrevo em seguida é individual variando de músico para músico. Optei por descrever o meu que é o que melhor conheço e porque não quero ferir susceptibilidades de ninguém. Prezo-me de ser um profissional em tudo o que faço e odeio a negligência ou qualquer aspecto que coloque em perigo o desempenho. No fundo quero tentar, através de mim descrever e transmitir o mais fielmente possível o ambiente que se vive no anteceder de um espectáculo.
Quando uma banda se reúne para ensaiar já é uma festa, mas quando o faz porque tem um concerto marcado para breve mistura-se o ambiente festivo com a ansiedade e a incerteza. Dizem-se disparates, tenta-se adivinhar como vai ser e atiram-se palpites sobre os muitos “ses” que nos ocorrem. O espectáculo próximo está presente em todas as conversas e todo os nossos amigos são convidados a estar presentes. O meu processo começa aqui.
O último ensaio terminou e daqui a dois dias terá lugar o espectáculo. Começo por seleccionar o material que vou usar no evento: guitarras, amplificador, emissor e receptor, cabos, pedais, palhetas, etc.
Todo o material seleccionado é minuciosamente inspeccionado e preparado para que não falhe a não ser por uma grande falta de sorte; uma avaria. Regra geral uso sempre duas guitarras no palco, uma que estou a tocar e outra num stand pronta para o que der e vier, mas posso ter mais duas de reserva na boca do mesmo igualmente prontas para utilizar. Todas as minhas guitarras possuem som e potência idênticos em termos de captadores por isso qualquer mudança de instrumento não afecta o som geral previamente delineado, já perceberão mais à frente o que quero dizer. Nas guitarras basicamente mudam-se as cordas, calibram-se e afinam-se, depois é só verificar a parte electrónica passar spray de contactos para tirar ruídos parasitas e está feito. Nos cabos convém verificar se as pontas estão boas e se não existem soldaduras partidas nada mais. No caso dos pedais e emissores temos que verificar as pilhas, algo que a maior parte dos músicos esquece até ao dia do concerto. Na parte dos amplificadores, os que são de válvulas, como é o meu caso, temos que nos assegurar de que as mesmas estão em perfeitas condições de utilização caso contrário substituir. O meu Hughes & Kettner Triamp usa cerca de 13 válvulas por isso, para além de verificar tenho sempre um conjunto de reserva não vá o Diabo tecê-las.
Depois do material escolho a roupa e acessórios que utilizarei, o visual é tão importante quanto o material, a minha identidade é algo sagrado (manias de músico). Depois de tudo organizado só volto a mexer-lhe no dia do evento.
O grande dia chegou. Regra geral os concertos ou são ao fim da tarde ou de noite e é vulgar chegarmos cedo ao local. Nesse dia a ansiedade entre os músicos é grande, mas também a animação. Horas antes do espectáculo subimos ao palco para montar o nosso material se não tivermos roadies ou para verificar o mesmo. Regra geral o teste de som (soundecheck) começa pelo baterista, mas este é sempre o último a acabar de montar o material.
Em primeiro lugar é afinado o som de palco. Cada músico possui um ou mais monitores de referência por onde ouve o som global do grupo, a isso chama-se som de palco. É um processo demorado. Depois disso o técnico de som de frente começa a afinar o PA (Public Adress) que é o som que o público vai ouvir, após estas afinações os músicos não devem alterar nem equipamento nem equalizações (alterar o som definido). Todo este processo demora uma tarde inteira muitas das vezes. Completados estes procedimentos e depois de tudo afinado, o tempo que medeia entre o término destas operações e a hora do espectáculo é usado para relaxar e comer uma boa refeição recheada com bom vinho ou cerveja, ansiedade, alegria e muito humor.
Falta uma hora para subir ao palco. Estamos no camarim a prepararmo-nos. A adrenalina está a subir em flecha, muita ansiedade, algum nervosismo até. Falamos uns com os outros tentando antecipar o que vai ser, dizendo que vai ser fácil, falamos desta ou daquela vez em que aconteceu algo e safámo-nos… falamos de tudo e de nada, mas o que queremos é que chegue a hora. Os minutos vão passando, agora mais lentamente e o nervosismo aumenta com a ansiedade à mistura. Faço aquecimento para os dedos, mentalmente revejo passagens mais complicadas desta ou daquela música enquanto participo nas brincadeiras do grupo. Falta meia hora… visto as roupas de guerra, aquelas que me tornam diferente do homem do dia a dia que sou, com aquelas roupas eu sou um dos heróis do palco, o rei do mundo de néon. Dez minutos… a adrenalina está no máximo, estamos nervosos, eufóricos, abraçamo-nos e murmuramos palavras de boa sorte - cinco minutos – um grito de guerra! Pegamos nas nossas coisas e encaminhamo-nos para o acesso ao palco. Os nervos é mais do que muito mas a adrenalina também, alguns começam a suar, outros sentem tremores, eu sinto um intenso formigueiro por todo o corpo, um calor imenso, uma ansiedade sem limites… o público grita de forma ensurdecedora, faço os primeiros acordes, o som entra-me pela alma a dentro, todo eu sou música, momento, adrenalina… estou no palco meu Deus, estou em casa!
quinta-feira, 16 de agosto de 2007
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13 comentários:
Primeiro que tudo quero dizer que gosto muito da nova aparência do blog. Ficou muito bem!
Obrigada por nos partilhar mais um pouco da sua vivência como artista. Claro que quem vai a um concerto pensa que os músicos apenas estiveram a trabalhar durante o tempo do espectaculo, mas na realidade trabalharam imenso para ensaiar todas as músicas para que tudo corresse bem. Mesmo que pareça fácil para quem assiste, é trabalhoso para quem actua.
Bjs e bom fim-de-semana!
Tenho noção de tudo isso, porque o mesmo se passa com a dança. Para um espectáculo de 1 hora e meia, passam-se 5 ou 6 meses de muito trabalho e quanto mais se aproxima a data, mais se trabalha.
Há dias em que o stress e a ansiedade é tanta, que mal podemos olhar uns p'ros outros e chegamos mesmo a dizer aquilo que, no fundo, não queremos.
Nos dias de espectáculo, nem há tempo para respirar e mal conseguimos engolir uma refeição.
Quando tudo termina, fica aquela sensação de "dever cumprido", que para quem assiste se resume a alguns momentos, mas para quem lá esteve significa o resultado de longos meses de trabalho, nem sempre com divertimento.
Beijinhos
Olá Afgane, antes de mais deixa-me dier que reparei logo na mudança de visual. Gostava mais do outro! Mas esta decoração também é bonita :)
Acerca do que é a vida de músico para o música e a vida de músico para quem ouve a música sim, são sem dúvida realidades bem diferentes (já vou conhecendo minimamente... ao fim de 11 anos!)
E a vida da mulher do gajo da música? Especialmente do baterista? Isso é que é!
Regra geral o teste de som (soundecheck) começa pelo baterista, mas este é sempre o último a acabar de montar o material.
Ser o primeiro a chegar, para descarregar a bateria no recinto, ainda por cima é o que ocupa mais espaço, arrumar tudo, estar toda afinadinha, depois o concerto, se se rasga uma pele é uma chatice daquelas, se se parte um prato idem, e as baquetas, e no fim... já os outtros todos estão "no bem bom" e está o baterista a desaparafusar pratos e a arrumar tarolas e pedais... Depois é o espaço no carro, voltar a por tudo lá dentro.
Olha, se eu seoubesse tinha era casado com o gajo da pandeireta!!
Beijinhos
Casa nova?
beijo d'enxofre
Já agora eu sou a outra Thunderlady... só para ão te baralhares, entrei com outro log in.
Bjoka
Oi, fui recomendado pela ThunderLady a ler este post, e identifiquei-me mto c ele...
A verdade é tento ser assim também organizado, ter a certeza q n me falta levar nada, tudo arrumadinho no carro, com a ajuda da Thunderlady, claro, as peças da bateria são mtas e mais parafusos q o resto da banda toda junta e tal...
Qto à roupa, tb uso sempre o mesmo "uniforme de palco", a t-shirt sem mangas e o belo do calçãozito para estar leve e confortável, as pulseiras elásticas de algodao por causa do suor e das tendinites, para isso tenho também o miracoloso spray "Picalm" que me ajuda no aquecimento e a toalha e águas no palco.
Assegurar que tenho todas as baquetes necessárias, a bateria limpinha de preferencia e a ventoinha a trabalhar...isto só no dia mesmo do concerto, pq antes há mesmo mto trabalho a fazer...
E a esperança de que o espectáculo corra bem...
Ufff... Até eu já estava a ficar com dores de estômago... Bela descrição!
(está muito bem, o blog. Mas ainda estive uns segundos a orientar-me, quando aqui cheguei...)
:) Já namorei com um guitarrista de coimbra, e andei um verão inteiro a acompanhá-los por Portugal inteiro... por isso já tinha noção de muita coisa... mas achei o teu texto muito completo e o final muito emotivo, mto bonito !
:) bjs!
uau, que vida excitante!
onde ficam os affies enquanto estás no palco?
nos camarins a uivar, aposto!!!
sorry..
slap's
voltei, a pedido da minha donicha para transmitir uma opinião frontal sobre a nova roupagem do blog.
ela diz que no geral gostou mas que o candeeiro é muito déjà vu.
(fartou-se de resmungar porque já o viu em outros blogs e fica sem saber em qual está)
aqui pr'a nós ela é dislexica e chata, mas tem bom gosto!
slap's
Carracinha,
Obrigado pela visita e bonito comentário, como sempre. Ainda bem que gostou da roupagem nova que ainda não é a definitiva, mas enquanto não chega a versão final fica esta.
Beijos
Ana,
Tens razão, uma hora de espectáculo pode significar meses de trabalho, especialmente na dança. Toquei com bailarinhas muitas vezes e elas tinham que ensaiar muito mais do que nós.
Beijos
Thunderlady,
11 anos casada com um músico é merecedor de uma medalha de heroína de primeira classe, os músicos são terríveis, qualquer deles. No caso trata-se de um baterista o que ainda agrava mais a situação, uma guitarra leva-se bem, uma bateria é obra! E ele não resolve ensaiar em casa he he he
beijos
Diabba,
Pois é arranjei uma casa nova para arejar. Nem só de inferno vive o homem.
Beijos
Thunderdrum,
Pois é meu amigo e ainda dizem que os músicos têm uma vida santa. A minha coluna pesa 47kg, a cabeça do amplificador 41kg e sou eu que carrego com eles, duas guitarras mais 10kg e isto somado a cabos, pedais e umas quantas coisitas mais, acrescentando a roupa de espectáculo cujas botas pesam 5kg já dá para fazer um bom exercício. CLaro que não invejo a tua posição pois já ajudei muitas vezes a carregar uma bateria e nessa hora é que me sinto feliz por ter escolhido ser guitarrista.
Abraço
Van Dog
É sempre uma alegria ter-te por cá Van, da próxima vez que mudar o visual mando-te um mapa.
Abraço
Tatoia,
Obrigado pelo teu comentário e vejo que sabes do que falo. Seja como for quando se gosta todos os sacríficios valem a pena.
Beijos
Marla,
Diz à tua dona que a mudança começa com um primeiro passo mas só fica pronta no fim. O candeeiro foi um presente para os meus patudos assim já têm onde alçar a pata he he he
beijos
Que loucura!
Na realidade nós (leigos do mundo da musica), não fazemos a menor ideia da trabalheira que é organizar todo um espectáculo. Só vimos o produto final e depois gostamos, ou não.
Beijos.
ehehehe... ok!
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